domingo, 5 de setembro de 2010

Corro

Volto a correr, o vento na cara, os passos leves na orla de São Vicente. Não mais Santos.
Saio de casa e me deparo com a fábrica de vidro. Trânsito pesado em frente. Arfo, subo o caminho de terra que dá na linha do trem e dá acesso à avenida principal. A bermuda me corre na bunda, deixando a cueca cinzenta a mostra. Subo, tiro o celular do bolso e corro. Corro com vontade, sentindo meus pés batendo forte no chão de cimento da calçada irregular. Corro ao lado da fábrica de vidro, sentindo o cheiro da fumaça da rua, dos carros e dos transeuntes, cobertos de suor do dia quente que faz em São Vicente. Corro e compro um novo short para correr mais tranquilo.
Atravesso a rua do shopping correndo. Uma subida leve que me exige dos pulmões velhos um novo fôlego. "Vamos, pulmão dos infernos. Somos melhores que isso", penso comigo enquanto o coração salta da boca.
Doem as pernas, desacostumadas ao esforço. Doem os braços, em seu contínuo mover. Doem os ombros e dói o peito. Mais pelo coração, apertado que pelos pulmões forçados ao limite. "Ainda não. Ainda não posso parar", penso. Não paro. Só quando a dor do corpo vencer a dor da alma, a sensação de abandono e solidão que me tomam. Corro, corro pensando em mil coisas que caem a minha volta. "Porque?" é a pergunta. "Porque é tão difícil conseguir um trabalho?" "Porque dá tanto trabalho pintar um apartamento?" "Porque ela não me liga?"
Por isso eu corro. Corro para não ver passar o tempo sob meus pés. Correndo ele passa rápido, serelepe, dando-me golpes mais leves. Corro para não pensar, pois quando as pernas doem, os pulmões se comprimem, o diafragma vai ao limite, então o cérebro só se ocupa do ritmo, só se preocupa em conseguir oxigênio, só tenta compensar a dor das pernas. Corro para que a dor no corpo vença a dor no coração.
Mas não consegue. O corpo pede tempo. Faz tempo que não corro. Faz tempo que não morro. Quero morrer nos braços dela. Saco! Sheakspeare usava a palavra morrer como uma metáfora para o orgasmo. Sinto que preciso dela. Não só prá gozar, mas para dividir, para não precisar correr, para ter onde deixar minhas angústias, um porto onde meus problemas de mar profundo vão encontrar a paz necessária para serem vencidos.
Venço-me pelo cansaço. Derribo-me à beira do mar, olhando a rua que tinha que vencer, mas não venci. Sento, arfo, canso, penso. Não quero pensar, mas penso. Penso e conjecturo. Penso, conjecturo e não gosto de minhas conclusões. Estou colocando coisas na minha cabeça. Preciso correr mais. O Gonzaguinha não é o bastante, preciso do Itararé. Preciso correr ainda. Ainda tenho pernas, mas não tenho pulmões. Ainda tenho coração. Mas que droga! Podia não ter coração. Assim esta angústia no peito desaparecia. Podia não ter coração, nem escrúpulos, nem pensamentos. Podia ser feito de pernas e pulmões, uns pulmões novos que suportassem a dor do diafragma esticado. Uns pulmões sem fim, que aguentassem correr tanto quanto as pernas desejam correr. Uns pulmões eternos, que aguentassem até que as pernas se tornassem ossos cobertos do limo conquistado na jornada. Até que pudesse mostrar o caminho trilhado de milhas e léguas e quilômetros rodados atrás, com tudo deixado para trás, tudo deixado de lado. Tudo abandonado.
Não. Abandonado não. Tudo a se resolver. Agora não corro, agora penso. Penso e não gosto, não quero pensar. Não quero pensar que minha fama, agora, é de ladrão, que minha ex-esposa está dizendo que eu roubei coisas. Não quero pensar no apartamento para pintar. Não quero pensar no prejuízo que estou levando. Não quero pensar que ela não me liga.. Ela não me liga... Ela não me liga...
Preciso correr, mas agora as pernas não aguentam mais. Preciso correr, mas o corpo dói, os pulmões dóem e a angústia não sumiu. Preciso correr, mas para onde? Já estou perto de casa, subindo a linha amarela, quase no viaduto.
Sim, preciso vencer a subida do viaduto. quinze metros de ladeira íngreme. Quase a escadaria do fórum em Chicago para Rock Balboa. Era em Chicago que Rock se passava? Não lembro. Não lembro de nada. Só sei que preciso correr, preciso chegar lá em cima. Preciso vencer aquela última parte da jornada.
O corpo padece da teimosia da cabeça. Agora o corpo sofre porque a mente não quer cumprir seu papel? Desde quando uma parte do corpo pode falar "não quero mais trabalhar" sem que a pessoa esteja morta? A mente não quer mais. Não quer mais passar por aqueles pensamentos, não quer estar entulhada de pensamentos chatos, repetidos e irreais. Ela não liga porque está sem créditos. Não liga porque está sem tempo. Não liga porque não me quer mais? Não me quer mais? Será que não quer?
A ladeira se estica sob os pés. Passos trêmulos e incertos. Pisadas fundas, calcadas em joelhos vacilantes. Sinto o músculo da panturrilha chorando. Solto um grunhido, junto com o ar. Um kiai desesperado de um guerreiro em fim de luta. A brevidade dos quinze metros torna-se a demora de anos luz de distância. Não sei mais como alcançar o cimo. O cume é tudo o que quero agora, sem mais dor, sem mais angústia, sem mais perguntas. De repente, no meio da ladeira, um estado de paz de espírito me toma, uma sensação de prazer mentirosa e curta. Endorfina, minha velha amiga... quanto tempo... que prazer te ver por aqui. Quase sorrio quando sinto subir pela espinha aquele prazer liquefeito, resultado do suor, da dor e da pressão nos pulmões. Um novo ânimo, um fôlego renovado, passos fortes, decididos, um último grito antes de chegar ao alto da ladeira.
Agarro-me ao poste. Não sorrio. A mente voltou ao estado anterior. A mente voltou às perguntas. Voltou aos questionamentos. A endeorfina se foi após um breve afagar. Ah, prazer mentiroso e tôrpe, me engana com seu toque suave, mas não fica, não dura, como braços de mulher da vida, se estendem para longe ao primeiro sinal de que estamos sem dinheiro. Acabado, jogado do lado do poste, esticando para trás as pernas caimbrosas, arfo, mais uma vez e grunho, mais de raiva do que como libertação.
Mas eu venci a ladeira, corri mais que podia, levei meu corpo além do limite, exauri minhas forças, senti dores maiores e mais lancinantes do que antes.
Agora, mais do que nunca, quero morrer. Nos braços dela...

Um comentário:

  1. Oi!

    Votamos em vc na sua categoria para o livro!
    visite o nosso blog e se gostar, vote tb!

    Um beijo

    http://eutimiaasavessas.blogspot.com/

    ResponderExcluir